Contingências do trabalho docente na escola pública: ensinar a ler e a escrever num contexto de mudança
Abstract
O problema que deu origem a essa investigação foi o conflito resultante do descompasso entre opções teóricas conscientes e a prática de ensino que conseguíamos efetivamente implementar, ao assumirmos aulas de Língua Portuguesa para turmas do ciclo II do Ensino Fundamental, em uma escola pública estadual, logo após a conclusão do mestrado em Educação. No intuito de priorizarmos práticas que favorecessem a formação de alunos leitores e produtores de textos, e não apenas copistas e decifradores, verificávamos a interferência de diversos aspectos que repercutiam negativamente em nossa prática. Assim, partindo do pressuposto de que o desenvolvimento dessas capacidades requer um ensino deliberado e contínuo ao longo de toda a escolaridade básica, por professores de diferentes disciplinas, propusemo-nos a buscar respostas para as seguintes questões: qual a natureza das dificuldades enfrentadas pelos professores ao buscarem promover a aprendizagem dos seus alunos? Que contingências relacionadas ao ensino da leitura e da escrita, deliberado ou não, estão presentes no trabalho do professor da escola pública, facilitando ou dificultando os processos de ensino e aprendizagem? Para responder a essas questões, empreendemos um estudo situado no paradigma da pesquisa qualitativa em educação, empregando, em algumas etapas, procedimentos inspirados na etnografia educacional (Ezpeleta e Rockwell, 1986; Fonseca, 1998; Erickson, 1989). A análise dos dados fundamentou-se em um critério essencialmente semântico, à luz de parâmetros da análise do conteúdo (Bardin, 1978). Os trabalhos de Tiramonti (2005), Azanha (1990, 2004), Souza (2002, 2006) e Lapo (2005), entre outros autores, subsidiaram teoricamente a nossa investigação, na medida em que propõem considerar aspectos do contexto mais amplo em que atuam os professores, focalizando situações concretas das quais emergem fontes de mal-estar e de bem-estar docente que intervêm em suas práticas. Os dados indicaram que o contexto da sala de aula não é, muitas vezes, propício ao trabalho cotidiano focado em práticas de leitura e produção de texto, em função de diversos fatores: número elevado de alunos, dificuldade de acompanhamento particularizado desses alunos pelos professores; necessidade de gerir demandas individuais e coletivas do grupo; dificuldades inerentes à manutenção de certa ordem que permita a realização de atividades complexas e significativas na sala de aula; interesses pessoais divergentes e por vezes conflitantes; recursos materiais às vezes escassos ou precários; tempo acelerado para gerir inúmeros procedimentos cotidianos, que acabam ocupando grande parte do tempo das aulas em questões não diretamente relacionadas ao ensino e aprendizagem dos conteúdos, entre uma infinidade de outros fatores. Além de questões de ordem objetiva, interferem também nas situações concretas de sala de aula aspectos de ordem subjetiva, que envolvem conhecimentos e características pessoais dos docentes, seus valores, crenças, necessidades e desejos, os quais determinam maneiras muito peculiares de avaliar o contexto, agir e reagir às contingências cotidianas. Todos esses elementos precisam ser considerados quando se propõem ações de melhoria da educação pública. É preciso, pois, relativizar as expectativas quanto ao papel da escola e dos professores, que parecem superestimadas no conjunto de ações que a sociedade precisa implementar para que a qualidade do ensino melhore de modo significativo.